A máxima “in dubio pro societate” tem ganhado popularidade em decisões judiciais e discursos públicos, especialmente em momentos decisivos como o julgamento da pronúncia no Tribunal do Júri ou em decisões que envolvem prisão preventiva e recursos em matéria penal.
Mas é preciso dizer com clareza: essa expressão não encontra base legal, doutrinária sólida ou respaldo constitucional no Brasil.
📌 O que significa, afinal?
Traduzido do latim, “in dubio pro societate” significa “na dúvida, a favor da sociedade”. Na prática, tem sido usada para justificar decisões que, mesmo diante da dúvida, optam por continuar o processo, manter a prisão ou mandar o acusado a júri. É vendida como um “contrapeso” à impunidade.
Mas esse raciocínio subverte os pilares do processo penal acusatório.
⚖️ O princípio da presunção de inocência
O ordenamento jurídico brasileiro adota expressamente o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII, da CF):
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Dessa premissa decorre outro princípio basilar: o “in dubio pro reo” — ou seja, na dúvida, decide-se a favor do acusado.
Essa garantia protege o indivíduo contra o poder punitivo do Estado, reconhecendo que a liberdade é a regra e a punição a exceção, condicionada à certeza da culpa após um processo justo e com ampla produção de provas.
❌ “In dubio pro societate” é o oposto disso
Adotar o “in dubio pro societate” significa inverter o ônus da prova, punindo sem certeza, tolerando a possibilidade de erro e relegando a liberdade a um valor secundário.
Mais do que juridicamente incorreta, essa prática é inconstitucional. Ignora o devido processo legal, a presunção de inocência e o próprio modelo de processo penal democrático.
🧠 O problema da pronúncia
Um dos principais espaços onde essa ideia se manifesta é no julgamento da pronúncia no Tribunal do Júri, onde se costuma dizer que, “na dúvida”, deve-se mandar o acusado a julgamento popular.
A jurisprudência consolidou a ideia de que, nessa fase, basta “indícios suficientes de autoria” — o que é legítimo dentro da sistemática do júri. O problema é quando essa baixa exigência de prova passa a ser confundida com a possibilidade de condenar com base na dúvida.
Mesmo no júri, o princípio da presunção de inocência permanece íntegro. O juiz togado pode mandar o caso a julgamento, mas os jurados devem absolver diante da dúvida.
🧨 Riscos de um processo penal punitivista
A retórica do “pro societate” cria um terreno fértil para o arbítrio: decisões baseadas em clamor público, seletividade penal e populismo punitivo.
O que se ignora é que a sociedade também se protege quando o processo penal respeita garantias.
O réu de hoje pode ser o cidadão comum de amanhã. A dúvida, tolerada hoje, pode se voltar contra qualquer um no futuro.
“In dubio pro societate” não é princípio. É discurso ideológico.
É uma tentativa de legitimar a punição sem prova suficiente.
É um retrocesso travestido de justiça.
Punir com base na dúvida não é proteger a sociedade — é ferir a Constituição e deslegitimar o processo penal.
Se a culpa não é certa, a resposta correta do Direito não é a punição, é a absolvição.