Vivemos em uma sociedade que, diante do medo e da insegurança, clama por punição. E punir, sim, faz parte do papel do Estado. Uma sociedade sem resposta penal diante de crimes graves gera desordem, injustiça e sofrimento.
Mas aqui está o ponto central: punir não é resolver.
Punir a qualquer custo, de forma desordenada e irracional, não resolve o problema — porque o crime, muitas vezes, não é a causa, mas o sintoma.
O sintoma de um sistema de justiça criminal falho, que prende muito, mas prende mal. Que castiga sem reeducar. Que marginaliza sem reintegrar. Que fecha os olhos para as raízes sociais, econômicas e psicológicas que alimentam a criminalidade.
Enquanto continuarmos acreditando que mais penas, mais prisões e mais repressão são as únicas respostas, vamos enxugar gelo. Vamos manter intacta a estrutura que fabrica desigualdade, exclusão e reincidência.
Punir direito significa ter um sistema que selecione o que realmente precisa de punição severa, que saiba diferenciar quem precisa ser afastado da sociedade de quem precisa de alternativas penais.
Significa garantir julgamento justo, processo legal, respeito à dignidade humana. Significa enxergar a pena como último recurso, não como política de governo.
O problema não é que o Brasil pune pouco. O problema é que pune mal.
E enquanto não olharmos para isso, vamos continuar enxergando a criminalidade apenas como um inimigo externo — quando, na verdade, ela também é um reflexo das nossas escolhas como sociedade.
Muito se fala hoje sobre o avanço da inteligência artificial no mundo jurídico. Alguns operadores do Direito veem na IA uma ameaça: será que ela vai roubar espaço de advogados, juízes, promotores? Será que vai substituir o trabalho humano?
A verdade é que a IA não é, por si só, o problema. O problema está no mau uso que alguns fazem dela.
Quando usada sem critério, a IA pode gerar erros grotescos: decisões automáticas, pareceres sem reflexão, petições genéricas e até riscos para direitos fundamentais. Há quem já queira automatizar etapas essenciais do processo judicial — inclusive decisões — como se a máquina pudesse captar as nuances da vida humana. Isso é perigoso.
Mas a IA não vai roubar o espaço de quem entende o próprio valor.
O bom advogado, a boa advogada, o juiz atento, o promotor criterioso, todos têm algo que a IA não tem: julgamento humano, ética, empatia e senso de justiça. A IA pode ajudar a pesquisar, organizar dados, otimizar tarefas — mas ela não substitui o olhar humano sobre o caso concreto.
Na prática, quem souber usar a inteligência artificial como ferramenta, e não como substituta, sairá na frente. Não se trata de competir com a IA, mas de aprender a integrá-la de forma inteligente e responsável.
O Direito lida com pessoas, vidas, histórias. E nenhum algoritmo — por mais avançado — será capaz de carregar sozinho esse peso.
Em 8 de janeiro de 2023, durante os atos antidemocráticos em Brasília, Débora Rodrigues dos Santos, cabeleireira de 37 anos, pichou com batom vermelho a frase “Perdeu, mané” na estátua A Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em março de 2025, o ministro Alexandre de Moraes votou por condená-la a 14 anos de prisão, considerando-a culpada por cinco crimes: tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa armada.
O julgamento na Primeira Turma do STF revelou uma divergência impressionante:
- Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cármen Lúcia votaram por 14 anos de prisão;
- Cristiano Zanin sugeriu 11 anos;
- Luiz Fux propôs 1 ano e 6 meses, apenas pelo crime de deterioração de patrimônio tombado.
Essa diferença de votos, que vai de 1 ano e meio a 14 anos, evidencia uma insegurança jurídica preocupante e a ausência de critérios objetivos claros na aplicação das penas.
Mais grave ainda: Débora não participou de qualquer articulação golpista, não promoveu violência, não organizou invasão, não armou-se nem contribuiu para os atos de maior gravidade daquele dia. Não há dolo, não há vontade direcionada à tentativa de golpe, nem conduta ou contribuição dela para os crimes mais graves imputados. Seu ato — ainda que reprovável — se limitou a riscar uma estátua com batom.
A defesa argumenta justamente isso: não se pode atribuir a ela penas por crimes nos quais não teve nenhuma participação efetiva ou intencional, sendo, no máximo, cabível a responsabilização por deterioração de patrimônio.
Esse caso levanta questões urgentes sobre proporcionalidade, justiça e o papel do Judiciário em diferenciar responsabilidades individuais. Punir quem cometeu crimes? Sim. Mas punir com justiça. Sem transformar o sistema penal em um instrumento de desproporção que fere princípios fundamentais.