A Megaoperação no Rio de Janeiro não é amoxicilina
outubro 29, 2025Nos últimos dias, o país se dividiu diante da operação policial no Rio de Janeiro, que resultou em mais de 60 mortos, número que pode ser ainda maior. Parte da sociedade aplaudiu a ação como necessária, afirmando que “o Estado retomou o território”. Outra parte enxergou abuso, execução e violência desmedida.
Não pretendo, aqui, tomar um lado absoluto. A polarização não ajuda. Em vez disso, proponho uma reflexão usando uma analogia simples: o corpo humano.
Imagine que você está com uma infecção de garganta. O problema real é a bactéria. Ela está ali, agindo, se multiplicando e produzindo toxinas. Mas o que você sente? Febre, dor, mal-estar. Esses são os sintomas.
Quando procuramos um médico, ele não foca exclusivamente em baixar a febre. Claro, ele pode prescrever antitérmicos para aliviar o desconforto. Mas isso não resolve a causa. O foco principal é tratar a infecção com antibióticos, reforçar imunidade, hidratar. Porque, se apenas tratarmos a febre, a doença continua se espalhando silenciosamente, piorando a cada dia.
O crime organizado é a infecção.
A alta criminalidade, os tiroteios, o medo constante são sintomas. Uma megaoperação policial que mata dezenas de pessoas atua, na prática, como um remédio para baixar a febre: reduz momentaneamente os sinais externos, alivia a sensação de insegurança, mas não elimina a causa da doença.
E mais: assim como uma infecção mal tratada pode voltar mais forte, mais resistente e mais agressiva, o crime organizado tende a se reestruturar, recrutar novos membros, buscar mais armamento e reagir com ainda mais violência. Em outras palavras: ao atacar apenas o sintoma, fortalecemos a bactéria.
Se 60 pessoas são mortas numa operação, culpadas ou inocentes, a facção repõe essas perdas em pouco tempo, e provavelmente multiplica o número de recrutados. Porque, para muitos jovens, o crime não é opção: é a única alternativa diante da ausência de educação de qualidade, saneamento básico, assistência social, cultura, esporte, perspectivas de futuro e políticas públicas efetivas.
E quando o Estado entra nesses territórios apenas com helicópteros blindados, caveirões e armas de grosso calibre, passa a mensagem de que está presente apenas para punir, nunca para amparar. Assim, a entidade que deveria ser vista como protetora passa a ser percebida como inimiga. Essa ruptura de confiança alimenta o ciclo.
É a infecção se espalhando.
É claro que operações policiais são necessárias. O crime organizado existe, é violento, armado e cruel. Mas achar que apenas ações armadas vão solucionar o problema é como acreditar que tomar antitérmico cura infecção: alivia hoje, agrava amanhã.
A verdadeira raiz do problema está nas raízes sociais:
- educação básica sólida;
- acesso à saúde;
- saneamento;
- lazer e cultura;
- oportunidade de trabalho digno;
- presença constante do Estado, não só na forma de farda e fuzil.
Sem isso, combatemos sintomas, não causas. E quando o corpo social reage assim, a infecção se adapta, cresce, resiste.
Enquanto continuarmos usando remédios para baixar febre em vez de antibióticos para combater bactérias, vamos repetir eternamente o mesmo ciclo: operações, mortes, mais facções, mais violência, mais medo.
A pergunta que fica é simples, mas incômoda:
Queremos aliviar a dor agora ou curar a doença de verdade?
A febre grita o que o organismo tenta nos avisar: algo está muito errado. E, se não tratarmos a infecção na origem, ela continuará devastando o corpo inteiro.

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