O instinto de punir é um sintoma que precisa ser averiguado

novembro 19, 2025

 


Há frases que, à primeira vista, parecem apenas observações banais do cotidiano, mas que, analisadas com cuidado, revelam advertências profundas sobre a natureza humana e as estruturas de poder. A provocação atribuída a Friedrich Nietzsche: “desconfie de quem tem o instinto de punir muito forte”, é uma delas. Em tempos de polarização, histeria coletiva e julgamentos instantâneos, esse aviso se torna quase um instrumento de sobrevivência intelectual.

O desejo exacerbado de punir diz muito mais sobre quem o manifesta do que sobre quem supostamente merece a punição. Ao longo da história, figuras públicas, líderes religiosos, governantes e cidadãos comuns já utilizaram o punitivismo como forma de projeção psicológica: punir o outro para esconder falhas internas, canalizar frustrações ou exercer controle. Por trás da retórica da “moralidade”, muitas vezes há sombras mal resolvidas.

No sistema de justiça criminal, isso se torna ainda mais evidente. Toda vez que um agente estatal abandona a razão jurídica e adota a lógica do “tem que prender mesmo”, sem contraditório, sem empatia, aproxima-se perigosamente da arbitrariedade. O Estado, quando pune, exerce seu poder máximo sobre o indivíduo. Se esse poder passa a ser guiado por instintos, e não por critérios, nascem abusos, excessos e injustiças. E, historicamente, abusos legitimados em nome da ordem produziram resultados devastadores.

A psicologia explica: pessoas com forte ímpeto punitivo tendem a enxergar o mundo de forma simplista. Para elas, a realidade se divide em “bons” e “maus”, “certo” e “errado”, sem complexidade social, econômica ou humana. Esse pensamento binário gera respostas rápidas, porém rasas. Afinal, compreender é sempre mais difícil do que condenar.

Nietzsche criticava exatamente esse moralismo ressentido: aqueles que buscam punir não por justiça, mas para satisfazer frustrações internas e afirmar poder. Segundo ele, onde há vontade exagerada de castigar, há ressentimento reprimido.

A filosofia política reforça o alerta. Michel Foucault demonstrou como o poder punitivo molda comportamentos, controla corpos e delimita quem pertence à sociedade ou deve ser excluído dela. Quando alguém sente prazer na punição, a justiça deixa de ser instrumento de equilíbrio e torna-se arma de dominação.

No convívio social, o fenômeno se repete. Pessoas que acreditam que tudo se resolve “no grito”, na humilhação ou na violência moral geralmente escondem inseguranças e dificuldades em lidar com suas próprias vulnerabilidades. Elas punem no outro aquilo que secretamente odeiam em si mesmas.

É por isso que ambientes profissionais, acadêmicos e familiares tendem a temer, não respeitar, personalidades punitivistas. Autoridade real não precisa gritar, ameaçar ou humilhar.

No Direito, esse alerta assume proporções ainda maiores. O processo penal foi construído para frear o punitivismo instintivo. Por isso existem contraditório, defesa técnica, presunção de inocência e provas rigorosas. Não se trata de proteger culpados; trata-se de evitar que inocentes sejam esmagados. Quem enxerga garantias como obstáculo não entende seu valor civilizatório.

Sociedades que sucumbiram ao punitivismo desenfreado caminharam para regimes autoritários. O apetite coletivo pela punição é como fogo: esquenta, mas se alastrado, destrói.

E é aqui que está a reflexão final:

  • Desconfie de quem sente prazer em punir.
  • Desconfie de quem comemora a prisão alheia.
  • Desconfie de quem reduz vidas a estatísticas.
  • Desconfie de quem nunca duvida — porque a dúvida é a base da justiça.

Punir é, sim, necessário. Mas punir com limites, critérios, humanidade e consciência dos erros possíveis.

A sociedade madura não clama por vingança, clama por justiça. A diferença entre uma e outra é longa, profunda e define quem somos enquanto povo.

E sempre que alguém erguer a bandeira do castigo como solução universal, lembre-se do alerta nietzschiano: talvez o que ele mais deseje não seja proteger a sociedade, mas alimentar seu próprio desejo de poder.

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