Qual a função do juiz: combater o crime ou garantir a lei?

dezembro 02, 2025

 

Quando falamos em sistema de justiça criminal, é comum observar uma distorção perigosa no imaginário popular: a ideia de que o juiz é um agente de combate ao crime, uma extensão da polícia ou do Ministério Público, alguém que deve defender os “interesses da segurança pública” a qualquer custo. Essa narrativa, repetida em manchetes, discursos políticos e redes sociais, empurra o Poder Judiciário para um lugar que não é seu. E toda vez que um juiz atua para satisfazer o clamor público, em vez de se guiar pela Constituição, o risco de injustiças se multiplica.

O juiz não é soldado, nem promotor, e muito menos autoridade policial. Sua função institucional é garantir direitos, controlar abusos e impor limites ao poder punitivo do Estado. Essa não é uma interpretação particular, é o desenho constitucional do Estado Democrático de Direito. Afinal, em qualquer relação entre o indivíduo e o Estado, os pesos são completamente desiguais. É justamente por isso que precisamos de um árbitro neutro: alguém que assegure que o processo seja justo, que as provas sejam legais e que nenhuma liberdade seja suprimida sem fundamento.

Infelizmente, o senso comum tende a enxergar garantias fundamentais como obstáculos, e não como conquistas civilizatórias. Termos como “presunção de inocência” ou “controles judiciais” são tachados de “proteção a bandido” por quem não compreende que essas salvaguardas foram criadas porque todos, indistintamente, podem um dia estar na posição de acusados, inclusive inocentes, inclusive você que está lendo esse texto. O processo penal existe para evitar condenações injustas e desmedidas.

Ao juiz não cabe satisfazer ânimos sociais inflamados, tampouco decidir com base em manchetes ou pressão política. Seu papel exige frieza, racionalidade, fundamentação e, acima de tudo, coragem para contrariar expectativas populares quando a lei assim exige. Juiz que se vê como agente de segurança pública contamina seu julgamento com vontade de punir, confundindo justiça com vingança. Justamente por isso, o ordenamento jurídico brasileiro proíbe que o magistrado atue como acusador, investigue de ofício provas contra o réu ou decida com base em suposições. Todo poder precisa de freios, e o poder de punir é um dos mais perigosos.

Essa separação de funções é o que chamamos de sistema acusatório: a polícia investiga, o Ministério Público acusa, a defesa defende as regras do jogo e o juiz julga. Quando essas fronteiras se dissolvem, o processo perde seu caráter técnico e se torna uma disputa de forças; e nesse tipo de disputa, o indivíduo sempre perde. Não é à toa que sistemas autoritários começam justamente pela captura do Judiciário: um juiz militante acelera prisões preventivas sem necessidade, transforma denúncias frágeis em condenações e legitima abusos policiais.

Proteger garantias fundamentais não significa compactuar com crime; significa impedir que o Estado se torne criminoso em seu combate. Direitos humanos, devido processo legal e ampla defesa não são presentes a quem erra, mas barreiras contra o arbítrio. Se hoje indignam alguns pela suposta proteção a um culpado, amanhã podem salvar a vida de um inocente.

É preciso compreender: o juiz não pode ser protagonista da repressão; ele é guardião das liberdades. Quando age assim, fortalece a democracia, protege minorias, evita perseguições políticas e impede que a força estatal se torne injustificável. Quando se desvia desse papel, abre espaço para o populismo penal, aquele que prende muito, sentencia rápido e julga mal.

É saudável cobrar eficiência da polícia. É legítimo exigir celeridade do Ministério Público. Mas é fundamental cobrar do juiz imparcialidade. Não se trata de ser bonzinho com réus, mas de ser fiel às regras do jogo que regem nossa civilização. O combate ao crime é indispensável, mas não pode custar a erosão da liberdade ou a história se repete.

Em tempos de radicalização e pressa por respostas simples para problemas complexos, a função contramajoritária do Judiciário se torna ainda mais importante. O juiz não existe para agradar, mas para garantir que ninguém seja esmagado pelo aparato estatal. Defender isso nunca foi fácil e hoje, menos ainda. Porém, é esse posicionamento que segura os pilares do Estado de Direito em pé.

Se queremos uma sociedade segura de verdade, precisamos de juízes que não se comportem como heróis punitivistas, mas como garantidores de direitos. Porque segurança pública sem direito não é segurança: é autoritarismo com outra roupa.

E sempre que esquecemos isso, pagamos caro.

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