Iniciar a carreira na advocacia é, para muitos, uma travessia marcada por insegurança e dúvidas. A faculdade de Direito entrega a teoria, mas a realidade forense exige algo a mais: segurança, clareza, postura e, sobretudo, autoridade profissional. Esse processo, no entanto, não se constrói do dia para a noite. É preciso método, dedicação e, acima de tudo, coragem para se expor.
O primeiro ponto é a comunicação. Saber a lei é uma obrigação, mas saber comunicá-la é o que diferencia um advogado respeitado de um advogado esquecido. A audiência não é um palco para recitar artigos de lei de forma mecânica, mas sim um espaço de persuasão. Uma sustentação oral bem feita, uma redação jurídica clara ou até mesmo uma reunião conduzida com firmeza podem transformar a percepção que colegas, magistrados e clientes têm de você. Um jovem advogado que se comunica com clareza transmite a impressão de maturidade profissional, ainda que esteja nos primeiros anos de carreira.
Outro aspecto essencial é dominar os procedimentos práticos. A insegurança de muitos recém-formados não vem da falta de conhecimento jurídico, mas da falta de familiaridade com o trâmite processual. Saber como protocolar uma petição, quais são os prazos mais sensíveis, como funciona o sistema eletrônico do Tribunal: tudo isso parece detalhe, mas na advocacia o detalhe pode custar um processo, e, pior, a confiança do cliente. Preparar-se tecnicamente é, portanto, um ato de responsabilidade e também de autoconfiança. Quem sabe o caminho não se perde no trajeto.
A construção da marca pessoal também não pode ser negligenciada. No mundo atual, a autoridade se constrói não apenas no tribunal, mas também no espaço digital. Um advogado que escreve artigos, produz vídeos ou comenta casos jurídicos relevantes demonstra não só conhecimento, mas disposição em partilhar esse conhecimento. Isso, aos olhos do mercado, significa autoridade. É claro que a exposição traz receios: o medo de críticas, a sensação de que ainda não se sabe o suficiente. Mas justamente esse movimento de se colocar no debate é o que acelera o amadurecimento profissional.
Relacionamentos também são um pilar inegociável. A advocacia é feita de pessoas, e a forma como você se relaciona com colegas, magistrados, servidores e clientes pode abrir ou fechar portas. A cordialidade, o respeito e a ética são lembrados tanto quanto a habilidade técnica. Muitas vezes, o respeito de um juiz ou a parceria de um colega de profissão se conquistam não apenas pela qualidade da peça processual, mas pela postura diante das situações mais tensas. É nesses momentos que se revela quem realmente tem autoridade.
Por fim, é preciso compreender que o tempo é aliado, e não inimigo. Autoridade não é algo que se decreta, mas algo que se conquista, dia após dia, audiência após audiência, petição após petição. A cada processo, a cada cliente atendido, o jovem advogado se torna menos inexperiente e mais sólido. A confiança nasce do enfrentamento das dificuldades, e não da ausência delas.
O início da carreira é turbulento, é verdade. Mas é justamente nesse momento que se formam os alicerces da confiança e da autoridade que acompanharão o advogado por toda a vida profissional. Cabe a cada um decidir se esse tempo será marcado pelo medo ou pela coragem de aprender e se posicionar.
No fundo, a advocacia é um ato de fé: fé no estudo, fé no trabalho e fé no próprio caminho. E quem planta essa confiança desde cedo colhe, com o tempo, não apenas reconhecimento, mas também a realização de exercer uma profissão que exige, acima de tudo, coragem e convicção.
Errar faz parte do processo de aprendizado, mas alguns erros podem ser evitados com planejamento e conhecimento. Aqui estão os mais comuns entre advogados iniciantes:
1. Subestimar a importância do marketing jurídico
O direito é uma profissão de reputação. Mas reputação não se constrói sozinha.
Muitos jovens advogados ainda acreditam que basta entregar cartões de visita ou esperar indicações para conquistar clientes. Isso até funciona em alguns casos, mas o alcance é extremamente limitado.
Hoje, quem não aparece, não existe. As redes sociais são a vitrine da advocacia contemporânea. Mostrar seu conhecimento em posts, artigos, vídeos e palestras não é apenas "propaganda", mas uma forma de gerar autoridade e educar potenciais clientes.
Exemplo: um advogado que publica conteúdos explicando de forma simples direitos trabalhistas ou penais consegue ser lembrado quando alguém da sua rede enfrenta exatamente aquele problema.
2. Não gerir bem o tempo
Na advocacia, prazos não são apenas burocracia: são a linha entre o sucesso e a tragédia processual.
Muitos iniciantes pecam por não terem método. Vão acumulando compromissos, esquecendo audiências, misturando atividades pessoais e profissionais. Resultado: caos, ansiedade e risco de falhas graves.
Ferramentas simples podem mudar isso: calendários digitais (Google Agenda, Outlook), softwares jurídicos de gestão de prazos, ou até mesmo planners físicos. O segredo não é só anotar, mas ter disciplina para seguir sua organização.
Exemplo: um advogado que centraliza prazos num sistema e organiza sua semana evita surpresas de última hora e trabalha com mais tranquilidade.
3. Falta de planejamento financeiro
Abrir um escritório não é só exercer a advocacia, é também administrar um negócio.
Muitos colegas se empolgam no início e gastam com aluguel caro, mobília sofisticada, marketing impulsionado sem estratégia. Meses depois, percebem que não têm fluxo de caixa para se sustentar.
Outro ponto: não calcular corretamente seus honorários. Aceitar valores baixos só para "não perder o cliente" pode inviabilizar sua carreira.
É essencial saber quanto você precisa faturar por mês para cobrir custos fixos e, a partir daí, precificar seus serviços de forma justa.
Exemplo: se o escritório gasta R$ 5.000,00/mês, o advogado precisa saber quantos contratos e de quais valores precisa fechar para se manter saudável financeiramente.
4. Aceitar qualquer caso sem análise
É tentador, no início, aceitar qualquer cliente que bate à porta. Afinal, há contas para pagar.
Mas essa escolha pode trazer dores de cabeça maiores que o benefício. Casos que não estão dentro da sua área de atuação, clientes com perfil problemático ou causas inviáveis podem comprometer seu tempo, sua energia e até sua reputação.
Exemplo: um advogado recém-formado em penal aceitar uma demanda complexa de direito tributário pode gastar horas estudando, sem entregar a melhor performance, e ainda frustrar o cliente.
É muito melhor dizer “não” para um caso fora da sua expertise do que comprometer sua credibilidade.
5. Não buscar apoio ou orientação
O advogado iniciante muitas vezes acredita que precisa “provar que dá conta sozinho”.
Essa mentalidade é perigosa. A advocacia é feita de colaboração: aprender com colegas mais experientes, participar de grupos de estudo, buscar mentoria e até dividir casos pode acelerar seu crescimento exponencialmente.
Exemplo: participar da Comissão da OAB da sua cidade pode gerar conexões, aprendizado e até parcerias profissionais.
Errar faz parte do aprendizado, mas aprender com os erros dos outros é um atalho poderoso. Advocacia não é só conhecimento técnico, é também gestão, estratégia e inteligência emocional.
Quanto antes o advogado iniciante compreender isso, maiores serão suas chances de construir uma carreira sólida e respeitada.
A proteção contra provas obtidas por meios ilícitos é uma das garantias mais importantes do processo penal democrático. Essa proteção tem origem na experiência norte-americana, onde se consolidou, ainda no início do século XX, a famosa teoria dos “frutos da árvore envenenada” (fruit of the poisonous tree).
A metáfora é simples: se a árvore está contaminada, seus frutos também estarão. Isso quer dizer que, se a origem da prova é ilegal, tudo o que dela se derivar também deve ser considerado contaminado e, portanto, inválido no processo penal.
Um dos casos clássicos que sedimentou essa ideia foi Silverthorne Lumber Co. v. United States (1920). Nele, agentes federais invadiram ilegalmente uma empresa, apreenderam documentos sem mandado, tiraram cópias desses papéis e tentaram usar essas cópias como prova. A Suprema Corte dos EUA entendeu que admitir esse tipo de manobra anularia o efeito da Quarta Emenda da Constituição, que protege contra buscas e apreensões arbitrárias.
Por que não basta excluir a prova direta
O mesmo raciocínio foi reafirmado em Nardone v. United States (1939), quando escutas telefônicas ilegais tornaram inválidas também confissões e informações que derivaram delas. Assim, ficou fixado que não basta excluir a prova obtida diretamente de forma ilegal, é preciso também afastar tudo o que dela se originar, pois o vício contamina todo o processo.
A necessidade de exceções: o surgimento da fonte independente
Com o tempo, porém, surgiu um dilema prático: processos inteiros eram anulados mesmo quando havia elementos legítimos que, isoladamente, seriam suficientes para condenar alguém. Para lidar com essas situações, a Suprema Corte americana criou exceções à regra da árvore envenenada, sendo a principal delas a chamada “Independent Source Doctrine”, ou teoria da fonte independente.
A doutrina ficou clara no caso Segura v. United States (1984). Nele, policiais entraram ilegalmente no apartamento de Segura e encontraram drogas. Dias depois, conseguiram um mandado judicial baseado em informações que já detinham antes da entrada ilegal, ou seja, informações que, por si só, legitimavam a busca. A Suprema Corte validou a nova apreensão, entendendo que a droga não era “fruto” da invasão, mas sim de uma fonte autônoma e lícita.
Outra exceção importante que surgiu nos EUA foi a da descoberta inevitável (inevitable discovery), firmada também em 1984, no caso Nix v. Williams. Aqui, ainda que uma prova tenha surgido de forma ilícita, se ficar provado que a polícia inevitavelmente chegaria à mesma prova por um caminho legal, ela pode ser aproveitada. É o que ocorre, por exemplo, quando equipes de resgate ou buscas estariam para localizar o mesmo objeto ou corpo, independentemente da violação.
A influência no Brasil: do Código ao Tribunal
Essa lógica, árvore envenenada, fonte independente e descoberta inevitável, foi incorporada no Brasil pela reforma processual penal de 2008. O art. 157 do Código de Processo Penal, em seu §1º, prevê que as provas derivadas de ilícitas também são inadmissíveis, salvo quando não houver nexo causal ou quando puderem ser obtidas por fonte independente.
Em teoria, é uma proteção sólida: não se pode usar prova contaminada, mas também não se pode punir o Estado se ele obtém a mesma prova por um caminho legítimo, autônomo e anterior à violação.
O problema na prática brasileira
Como - quase - tudo no Brasil, a fonte independente muitas vezes é usada de forma distorcida, tornando-se um atalho para legitimar provas contaminadas. Não é raro ver situações em que a polícia faz uma abordagem claramente ilegal, por exemplo, invade um domicílio sem mandado judicial, encontra drogas ou armas e depois tenta justificar afirmando que já tinha uma denúncia anônima, um relatório de inteligência, ou até uma investigação em andamento que “levaria ao mesmo resultado”.
O detalhe é que, diferentemente do padrão norte-americano, não há nova apreensão obtida por um ato válido, com base em fatos pretéritos e com decisão judicial regular. Na prática, é a mesma apreensão ilegal, agora “lavada” pela justificativa de que haveria uma “fonte independente”. É justamente o oposto do que o caso Segura deixou claro: lá, houve um novo mandado, nova diligência e nova apreensão. No Brasil, muitas vezes não há nada disso.
Quando a fonte independente é falsa
Para que a exceção seja legítima, é essencial comprovar:
- Que a linha investigativa independente já existia antes da violação.
- Que haveria diligência autônoma e legal de qualquer forma.
- Que a nova prova foi obtida de fato por esse outro caminho, não apenas justificada depois.
Se não houver nova diligência válida, não há fonte independente, há contaminação da prova, contrariando o art. 157 do CPP e o art. 5º, LVI, da Constituição, que veda expressamente provas ilícitas no processo penal.
Por que isso importa
Permitir que a teoria da fonte independente seja usada como desculpa para validar provas claramente ilegais anula a função da vedação de provas ilícitas. Abre-se um precedente perigoso: se qualquer violação pode ser justificada depois, o direito à inviolabilidade de domicílio, à intimidade e à legalidade das investigações vira letra morta.
Portanto, a doutrina da fonte independente deve ser defendida exatamente como concebida na origem: uma exceção restrita, objetiva e comprovável, que exige cronologia clara, documentação pré-existente e, principalmente, uma nova diligência legítima que se sobreponha à violação.
A árvore envenenada e a fonte independente são faces de uma mesma moeda: proteger o processo penal da contaminação por abusos estatais, sem travar investigações legítimas. O que não pode acontecer é transformar uma exceção em porta aberta para convalidar ilegalidades. Essa é a linha que diferencia o que a Constituição garante e o que, infelizmente, às vezes se vê nos tribunais.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça alcançou a impressionante marca de 1 milhão de habeas corpus julgados. A notícia repercutiu no meio jurídico e gerou críticas por parte de ministros e estudiosos que enxergam nisso uma suposta banalização do habeas corpus.
Mas será mesmo que o problema está no número de habeas corpus?
Não. O alto número de habeas corpus não é a doença, é o sintoma. Ele revela, na verdade, um sistema de justiça criminal adoecido, marcado por abusos, prisões ilegais, excesso de cautelares, prisões preventivas eternizadas, penas mal aplicadas, decisões desproporcionais e violações sistemáticas de direitos fundamentais.
O habeas corpus é a ferramenta mais urgente e fundamental de proteção à liberdade, garantida constitucionalmente para evitar e cessar constrangimentos ilegais. Quando há abuso, quando há arbitrariedade, quando há excesso, é natural - e necessário - que os advogados acionem o Judiciário para corrigir essas violações.
Culpabilizar os advogados ou a própria ferramenta jurídica pelo número de impetrações é inverter a lógica: não se trata de “banalização do habeas corpus”, mas sim de banalização da injustiça no dia a dia do processo penal.
Se há muitos habeas corpus, talvez o foco não deva ser reduzir pedidos, mas reduzir as ilegalidades que os tornam necessários.
Um Judiciário que se incomoda com 1 milhão de habeas corpus deveria se incomodar ainda mais com:
✔️ prisões cautelares mal fundamentadas,
✔️ flagrantes com base em denúncias anônimas,
✔️ penas desproporcionais,
✔️ processos arrastados por anos sem sentença,
✔️ pessoas pobres e sem defesa qualificadas encarceradas preventivamente.
Punir com justiça, respeitar direitos e garantir defesas adequadas são os verdadeiros caminhos para reduzir o volume de habeas corpus — e não simplesmente reclamar do número de pedidos.
Costuma-se dizer que "fulano deu sorte". Que “estava no lugar certo, na hora certa”. Que a vida “sorriu pra ele”. É bonito, poético — e também uma enorme armadilha.
Porque o que muita gente chama de sorte, na verdade, é o encontro entre uma oportunidade e alguém preparado para aproveitá-la. Oportunidades passam o tempo todo — só que nem todo mundo está pronto. Nem todo mundo acordou cedo. Nem todo mundo estudou. Nem todo mundo estava se desenvolvendo. Nem todo mundo treinou o corpo, a mente e o espírito para aguentar a pancada do sucesso.
É por isso que a sorte só sorri para quem está acordado.
A oportunidade vai passar por você. A pergunta é: você vai estar pronto?
Você quer passar num concurso? Quer crescer na advocacia? Quer se tornar referência em alguma área? Ser convidado para aquele projeto? Ser visto? Ouvido? Reconhecido?
A pergunta certa não é “como eu consigo isso?”. É: "Se isso aparecer amanhã, eu dou conta?"
Imagine só: o seu nome entra no radar de alguém grande, aparece uma vaga num escritório, um professor te convida para escrever junto, ou surge um caso que pode mudar sua carreira. Se você não estudou o que devia, se não tem postura, se não se comunica bem, se não se posiciona, se vive no automático e não se prepara, você perde. A oportunidade bate e vai embora.
E sabe o que é mais cruel? Você talvez nem perceba que ela passou. Porque não é só sobre estar “visível”, é sobre estar pronto. Visibilidade sem preparo é só vitrine vazia.
O preparo é diário. É invisível. E é isso que incomoda.
A preparação é feita nas horas em que ninguém está olhando. É quando você levanta e estuda mesmo cansado. É quando você vai para a academia mesmo com preguiça. É quando você revisa aquela aula chata, escreve um texto que ninguém mandou, assume a bronca que ninguém quis.
E quando tudo dá certo — a resposta do mundo é sempre a mesma: “Você deu sorte”.
Não. Você não deu sorte. Você criou espaço para ela chegar. Você construiu a ponte que ligou você à oportunidade.
Mas as pessoas preferem acreditar que foi sorte, porque assim elas se isentam. Pensam: “Ah, eu não tive a mesma sorte”.
É mais fácil do que admitir que talvez elas não estavam se preparando para nada.
Sucesso é estrutura, não evento!
Quem cresce de verdade, cresce com base.
E base não se constrói com impulso. Se constrói com constância.
E constância exige compromisso com você, com seus sonhos e com a vida que você diz que quer viver.
Por isso, eu levanto todo dia e me preparo. Estudo, leio, escrevo, trabalho, treino, me visto bem, mesmo quando ninguém está olhando. Mesmo quando parece que nada está mudando.
Porque o meu compromisso não é com o agora. É com o que eu posso me tornar.
Se a sorte aparecer, eu quero estar pronto. Se não aparecer hoje, tudo bem. Estarei ainda mais pronto amanhã.
E quando ela vier (e ela vai vir), vão dizer que foi sorte.
E eu vou sorrir. Porque eles nunca entenderão que a sorte não explica nada. Ela só revela quem estava preparado.
A máxima “in dubio pro societate” tem ganhado popularidade em decisões judiciais e discursos públicos, especialmente em momentos decisivos como o julgamento da pronúncia no Tribunal do Júri ou em decisões que envolvem prisão preventiva e recursos em matéria penal.
Mas é preciso dizer com clareza: essa expressão não encontra base legal, doutrinária sólida ou respaldo constitucional no Brasil.
📌 O que significa, afinal?
Traduzido do latim, “in dubio pro societate” significa “na dúvida, a favor da sociedade”. Na prática, tem sido usada para justificar decisões que, mesmo diante da dúvida, optam por continuar o processo, manter a prisão ou mandar o acusado a júri. É vendida como um “contrapeso” à impunidade.
Mas esse raciocínio subverte os pilares do processo penal acusatório.
⚖️ O princípio da presunção de inocência
O ordenamento jurídico brasileiro adota expressamente o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII, da CF):
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Dessa premissa decorre outro princípio basilar: o “in dubio pro reo” — ou seja, na dúvida, decide-se a favor do acusado.
Essa garantia protege o indivíduo contra o poder punitivo do Estado, reconhecendo que a liberdade é a regra e a punição a exceção, condicionada à certeza da culpa após um processo justo e com ampla produção de provas.
❌ “In dubio pro societate” é o oposto disso
Adotar o “in dubio pro societate” significa inverter o ônus da prova, punindo sem certeza, tolerando a possibilidade de erro e relegando a liberdade a um valor secundário.
Mais do que juridicamente incorreta, essa prática é inconstitucional. Ignora o devido processo legal, a presunção de inocência e o próprio modelo de processo penal democrático.
🧠 O problema da pronúncia
Um dos principais espaços onde essa ideia se manifesta é no julgamento da pronúncia no Tribunal do Júri, onde se costuma dizer que, “na dúvida”, deve-se mandar o acusado a julgamento popular.
A jurisprudência consolidou a ideia de que, nessa fase, basta “indícios suficientes de autoria” — o que é legítimo dentro da sistemática do júri. O problema é quando essa baixa exigência de prova passa a ser confundida com a possibilidade de condenar com base na dúvida.
Mesmo no júri, o princípio da presunção de inocência permanece íntegro. O juiz togado pode mandar o caso a julgamento, mas os jurados devem absolver diante da dúvida.
🧨 Riscos de um processo penal punitivista
A retórica do “pro societate” cria um terreno fértil para o arbítrio: decisões baseadas em clamor público, seletividade penal e populismo punitivo.
O que se ignora é que a sociedade também se protege quando o processo penal respeita garantias.
O réu de hoje pode ser o cidadão comum de amanhã. A dúvida, tolerada hoje, pode se voltar contra qualquer um no futuro.
“In dubio pro societate” não é princípio. É discurso ideológico.
É uma tentativa de legitimar a punição sem prova suficiente.
É um retrocesso travestido de justiça.
Punir com base na dúvida não é proteger a sociedade — é ferir a Constituição e deslegitimar o processo penal.
Se a culpa não é certa, a resposta correta do Direito não é a punição, é a absolvição.
A recente condenação do comediante Léo Lins a mais de oito anos de prisão e multa pelo conteúdo de piadas em seu show “Perturbador” acendeu um alerta perigoso: o Brasil pode estar naturalizando a punição da comédia — uma das formas mais antigas e legítimas de crítica social.
Não se trata aqui de dizer que todas as piadas são boas, apropriadas ou engraçadas. Mas sim, reconhecer que a comédia é, por definição, uma arte exagerada, provocativa, que distorce a realidade para gerar impacto, riso e, muitas vezes, reflexão.
A comédia sempre foi perturbadora — e necessária
Na Grécia Antiga, Aristófanes já usava o riso como arma política. Em peças como As Nuvens ou Lisístrata, ele satirizava filósofos, militares e a guerra, colocando a comédia como linguagem de resistência.
Séculos depois, Molière, na França do século XVII, ironizava o moralismo e a hipocrisia burguesa com personagens como o falso devoto em O Tartufo. Era a crítica social travestida de riso — e não raro perseguida por isso.
No Brasil, gênios como Chico Anysio, Jô Soares e Ariano Suassuna entenderam e praticaram esse mesmo ofício: rir para expor, exagerar para revelar. Em Auto da Compadecida, por exemplo, a comédia é o pano de fundo para questionamentos morais, sociais e religiosos profundos.
Ou seja, o humor nunca foi sobre agradar — mas sim sobre tensionar. Ele não nasce da conveniência, mas do desconforto.
Piada é crime?
A questão que deveria ser feita não é “essa piada é boa?”, mas sim: existe dolo? Intenção de ofender alguém diretamente, fora do contexto cômico? No caso de Léo Lins, trata-se de um espetáculo artístico, com plateia pagante, com conteúdo anunciado e classificado como “humor negro” — ou seja, não há vítima direta, nem motivação discriminatória autônoma.
A criminalização nesse contexto é preocupante porque desconsidera o caráter da comédia como gênero artístico. Se a régua penal passa a ser aplicada sobre o conteúdo humorístico, corremos o risco de censurar toda forma de arte provocadora — música, teatro, literatura, cinema.
Um precedente perigoso
A decisão também escancara um problema jurídico de fundo: não há consenso claro sobre onde está o limite da liberdade de expressão artística. E quando esse limite é traçado conforme o gosto ou a sensibilidade momentânea, abre-se caminho para a arbitrariedade.
Ao condenar um comediante por piadas — por mais infelizes que possam parecer a alguns — o Judiciário transforma o gosto pessoal em régua jurídica. E isso coloca em xeque a própria democracia, cujo alicerce é a pluralidade de ideias e expressões, inclusive (e especialmente) as que incomodam.
Advocacia predatória não é o que incomoda o sistema. É o que o destrói por dentro.
Artigos junho 04, 2025Muito se fala em “advocacia predatória” hoje em dia. Mas pouco se aprofunda.
Advocacia predatória não é o excesso de recursos, nem o habeas corpus impetrado com ousadia, nem o advogado que bate de frente com o Judiciário.
Isso tudo pode incomodar, sim. Mas é parte da luta por direitos num sistema que, muitas vezes, se fecha para ouvir.
O que se chama de advocacia predatória, em sua essência, é uma distorção perversa da atividade jurídica. É a atuação baseada em:
- Ações padronizadas em massa, sem individualização dos fatos ou das partes;
- Processos propositadamente sem mérito jurídico, ajuizados apenas para pressionar acordos;
- Uso sistemático do Judiciário como indústria de lucro, transformando pessoas em números e o direito em mercadoria;
- Fraudes e má-fé, em que o cliente muitas vezes nem sabe que seu nome está vinculado a um processo.
É um modelo empresarial que instrumentaliza a Justiça como linha de produção. É produtivismo jurídico descolado da ética.
Mas precisamos fazer uma advertência:
⚠️ Há uma linha tênue entre o combate à advocacia predatória e o silenciamento da advocacia combativa.
Tem quem se esconda atrás do termo “predatória” para deslegitimar o advogado que questiona o sistema, que denuncia arbitrariedades, que entra com habeas corpus desconcertantes, que recorre contra decisões injustas.
Esses não são predatórios. São necessários.
A verdadeira advocacia predatória não desafia o sistema — ela se aproveita dele.
Ela não busca justiça — ela busca repetição e lucro.
Ela não confronta — ela consome.
⚖️ E o problema maior: quando a advocacia vira só repetição, o Judiciário responde com a mesma moeda — vira só máquina.
O Direito perde humanidade.
O advogado vira despachante.
O cliente, um número.
Por isso, é preciso ética e coragem para diferenciar o advogado que atua com paixão e estratégia daquele que explora o sistema como negócio impessoal.
E também é preciso vigilância, para que o discurso contra a advocacia predatória não se torne uma mordaça disfarçada.
Quando a vítima procura o agressor, ainda há crime por violação de medida protetiva?
Artigos maio 28, 2025📜 Quando a vítima procura o agressor, ainda há crime por violação de medida protetiva?
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) representa um importante avanço na proteção das mulheres em situação de violência. Entre os mecanismos de proteção previstos, estão as medidas protetivas de urgência, que podem impor ao agressor o afastamento do lar, a proibição de aproximação ou de contato com a vítima. O descumprimento dessas medidas é considerado crime, previsto no artigo 24-A da mesma lei, com pena de detenção de 3 meses a 2 anos.